quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Garota Exemplar

De todos os herdeiros cinematográficos que Alfred Hitchcock deixou, David Fincher é meu favorito. A alcunha de “herdeiro” não é à toa, o diretor possui um cuidado meticuloso com a progressão narrativa de seus filmes e sabe muito bem manipular as emoções do espectador à la Hitchcock. Resultando em obras bem polidas, com roteiro bem mastigado e de personagens interessantes e carismáticos. Em suma, trata-se de um dos melhores a serviço de Hollywood. Por isso, minhas expectativas em relação à Garota Exemplar eram altas. Amy (Rosamund Pike) desaparece no seu aniversário de cinco anos de casamento com Nick (Ben Affleck). Não demora muito para o desaparecimento de Amy se tornar manchete de todos os jornais, com Nick sendo o principal suspeito. Um thriller bem ao estilo Fincher, Garota Exemplar mantém boa parte das características que sempre me atraíram no cinema dele, bem como algumas que não me entusiasmaram tanto.

A primeira parte é espetacular, maquiavelicamente arquitetada com cortes rápidos e tensos, para o espectador ser imerso no clima de dúvida e discórdia acerca do desaparecimento da protagonista. Personagens de intenções duvidosas, flashbacks inspirados, bons diálogos e ótimo ritmo. A combinação essencial para a platéia se manter ansiosa e atenta a cada nuance comportamental de Nick. É o inferno matrimonial tratado de maneira rebuscada para que os personagens sejam respeitados como pessoas de falhas e virtudes que podem ser, ou não, capazes de tudo quando acuadas. Fincher entende a importância dos protagonistas para uma narrativa dessas fluir e confere total confiança para Pike e Affleck adicionarem dramaticidade a obra, felizmente eles conseguem. Soma-se a uma ótima trilha sonora encabeçada por Trent Reznor e tudo está em seu lugar, os dramas funcionam e a atmosfera de “Caça as bruxas” é perfeita. Fincher tem a platéia em suas mãos.

Os incômodos começaram na segunda parte, mais redundante e de ações mais maniqueístas. Existe uma mudança clara (evitando grandes spoilers) no ritmo e desenvolvimento do filme, o quê em si não necessariamente configura-se em uma falha. Porém no caso de Garota Exemplar, tive sérios problemas com o tom histérico que o filme passa a ter. O ar de mistério se dissipa e dar lugar a uma brincadeira de mocinhos e vilões que se prolonga bem mais do que o necessário. O filme passa a se concentrar na alegoria do casamento de aparências como uma forma de atacar diretamente o jornalismo sensacionalista e Amy se torna o arquétipo da mulher vingativa unilateral, indo contra sua persona incompleta e sedutora da primeira parte, se assemelhando a uma vilã de novela mexicana.

Existe uma aceitação tão calorosa do segundo ato, indo até o fim do filme, com o lado repulsivo adquirido por seus personagens que essa histeria se torna uma força estética em si. É um desfile de personagens representativos do que há de pior em cada um de nós. Garota Exemplar vai de filme noir para a loucura de um Pink Flamingos (sem teor escatológico), perde seu caráter intimista e ganha dimensões grotescas e sociais que podem funcionar com outros espectadores, porém em minha percepção acabou inutilizando boa parte do suspense construído anteriormente. É visível que já em sua metade não há novas direções que o filme possa seguir, tornando-o bem mais descritivo do que interessante. Talvez ainda seja um filme que exige maturação para melhor ser absorvido, quem sabe esses problemas desapareçam em uma futura revisão.


Porém mesmo com minha decepção a partir da primeira hora, Fincher não deixa de criar cenas sensoriais bonitas que tornam o filme um deleite para os olhos. Com a insanidade matrimonial se revertendo em imagens provocantes e reflexivas ao espectador, especialmente para aquele que possui uma visão ingênua do termo "briga de marido e mulher ninguém mete a colher". A naturalidade e delicadeza transmitida pelos protagonistas os tornam tão criveis que quando o vermelho pulsante do sangue é mostrado, o contraste buscado por Fincher entre realidade e aparências é belamente transmitido. Garota Exemplar pode não figurar entre os meus favoritos, mas a direção competente e os temas pertinentes garantem que ele figure entre os melhores pipocões que Hollywood fez esse ano.

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