quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Império dos Sonhos

In Pitch Dark, i go walking in

O apelo do gênero terror\suspense está na invulnerabilidade que a audiência possui perante as forças sobrenaturais que perseguem os personagens desamparados por algumas horas. A plateia normalmente indaga sobre como se comportariam perante tais situações de desespero e aflição, o gênero entretém, pois fornece essa “insegurança-segura”. David Lynch é um dos melhores que sabe quebrar esse contrato entre plateia e filme, fazendo com que seus espectadores sofram na pele dos mocinhos noir e curiosos de Veludo Azul, Twin Peaks, Cidade dos Sonhos e Estrada Perdida. Tais personagens são perseguidos e confrontados por forças maléficas que assumem diversas formas (espírito, bruxa, psicopata), que não só cumprem suas funções de antagonistas, como também se tornam personas tão impactantes e profundas que o espectador se sente amedrontado mesmo após o término do filme. As criaturas de Lynch são possuidoras de um ódio além da compreensão e suas motivações se relacionam com o lado mais obscuro do homem, mas elas são apresentadas com uma roupagem de carne e osso, fazendo-as ainda mais reais e assustadoras. Agora imagine se uma dessas forças possuísse Lynch e dirigisse um filme, Império dos Sonhos seria essa obra

Primeiro filme do diretor rodado inteiramente em digital, Império dos Sonhos é um longo pesadelo surrealista de estética câmera na mão, feito assim, para quebrar toda e qualquer barreira existente entre ficção\documentário e real\irreal. Ao jogar o espectador no meio do caos povoado por close-ups distorcidos, coelhos falantes, ambientação granulada escurecida, David Lynch reinventa seu cinema. Sua metalinguagem se concentra na fragilidade (celuloide) e podridão (Hollywood) da sétima arte, apontando um caminho incerto e escuro para seu cinema em meio a dilemas estéticos (não é a toa que o diretor não dirigiu nenhum filme desde então). Em nenhum outro momento Lynch deixou seu cinema tão aberto e perigoso como em Império dos Sonhos. É auto referencial, inquieto, esquizofrênico e desesperado em sua procura por um novo cinema. Essa obsessão acabou resultando no melhor pesadelo de Lynch, um filme genuinamente angustiante de se assistir.

Em sua maior parte, Império dos Sonhos é ambientado em Hollywood, algumas cutucadas nos talk shows freaks e na cultura de celebridade e já sentimos um certo desprezo pela cidade dos anjos. Lynch demonstra seu inconformismo com o cinema hollywoodiano, que alguns podem até dizer que o diretor faz parte, porém seu olhar crítico acaba por se direcionar para outros lugares ainda mais distópicos. O diretor já havia abordado sua paranoia industrial e paternal em Eraserhead, mas nada perto do pesadelo humano de Império dos Sonhos. O monstro-filme ataca diretamente o espectador, não há sossego, a câmera se comporta como uma arma apontada para a  cabeça da plateia, a tensão permanece por mais de uma hora ininterrupta e diversos disparos são feitos, para logo em seguida a arma ser recarregada e recolocada no mesmo local. Seus sustos não são fáceis e repetidos, Lynch prioriza os cantos escuros e consegue deixar sua plateia paranoica e aflita, amedrontando-as com imagens bizarras que só aumentam o grau de tensão para a sequência seguinte (espere até ver o final). Especialmente, o terror surge da quebra da quarta barreira, os momentos são tão inesperados que surgiram diversos efeitos de repulsa por parte desse fã do gênero. O trabalho de som impecável contribui para a criação de uma atmosfera natural e orgânica, com um barulho sendo meticulosamente planejado para ressoar diversos ecos na cabeça do espectador. Fazendo de seus chiados um tique-taque constante de uma bomba que vai inevitavelmente explodir. Talvez nunca houve imagem tão violenta e agressiva como nesse filme, a vulnerabilidade da plateia é constantemente ressaltada ao longo de seus 180 minutos.
A precariedade da imagem absorve o espectador, aprisiona-o em close-ups e em planos fechadíssimos que buscam captar nossos medos do desconhecido e do escuro. Império dos Sonhos é a psique aberta de uma das criaturas violentas de Lynch, o diretor não está possuído, como eu apontei para melhor exemplificar, mas Nikki (Laura Dern) está. Ela, atriz de meia idade que aceita protagonizar um filme, descobre que o projeto já havia sido iniciado por outra equipe, porém foi tragicamente interrompido pela morte misteriosa do casal de protagonistas. Enquanto começa a adentrar em sua personagem, a realidade de Nikki começa a se misturar com a narrativa e com a vida da falecida atriz. É uma bagunça de múltiplos núcleos narrativos, um choque entre diferentes realidades, um drama sobre os transtornos de uma mulher (cinema) a beira da loucura. David Lynch até reencontra a nostalgia de seus antigos sonhos ao final do filme, mas não antes de passar pelo surreal painel de horrores que habita seu universo, o de sua protagonista, e o do espectador. Apesar de não ser uma experiência fácil (faço menor ideia de como vou dormir hoje), Império dos Sonhos é possivelmente o maior pesadelo que a sétima arte me ofereceu, uma reflexão absolutamente genial de seu artista sobre o cinema e aqueles que o assistem.


                 Música do título:

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